segunda-feira, setembro 14, 2015

Paris é uma festa - Parte I - Réveillon

Quando eu cheguei a Paris não sabia exatamente o que esperar. Tinha apenas as referências dos livros que havia lido – especialmente os de Balzac –, dos filmes que tinha visto, e, obviamente, dos relatos de parentes e amigos que voltavam de lá encantados e apaixonados, com os olhinhos brilhando e cheios de graça como se tivessem tido uma experiência religiosa. Para mim, no entanto, Paris era uma colcha de retalhos que se amontoavam entre Louis XIV, Os Três Mosqueteiros, Revoluções, cabeças decapitadas, Marias Antonietas, manifestos comunistas, Corcundas de Notre Dame, Rimbauds, Renoirs, escargots, baguetes com frois-gras, e Charles Aznavour comendo macarrons com Edith Piaf em algum café. Um lugar onde as pessoas andavam “bras dessus, bras dessous en chantant des chansons” com as caras felizes, vendo pintores de boinas e bigodinhos finos levando tapas das mulheres com cabelos no sovaco. Pondo em palavras agora, vejo que minha visão era meio conturbada e quimérica, algo entre o esotérico e o psicodélico. Mas Paris não é nada disso, ou talvez seja tudo isso e muito mais. Talvez seja uma festa aonde todos nós somos convidados a entrar e de onde saímos com o coração pesaroso por deixá-la para trás.

E se Paris é uma festa, para mim foi uma festa de Réveillon. Cheguei lá para as celebrações de final

de ano e para reencontrar meus amigos Globe Trotters Fabrício e Gabi (http://www.projeto101paises.com.br/), que não via há mais de um ano, e visitar um amigo francês que tinha conhecido no avião num voo da Bahia a Amsterdam alguns meses antes. Nessa união do útil ao agradável fui surpreendido de formas diferentes e cheio de sentimentos ambivalentes em relação à Cidade Luz.

Ao descer no aeroporto de Beauvais fui recebido com um sorriso esfuziante do agente da imigração que segurava meu passaporte e dizia “Brésil, hein!!! Neymar!!!”, e eu, com cara de quem tinha passado a madrugada acordado no aeroporto e não dormido no voo, respondia com um sorriso amarelo “oui, oui! Neymar, Pelé, Ronaldô, Carnaval” e pensava “bate esse carimbo logo, seu moço!”. Meu amigo Johann já deveria estar me esperando no saguão enquanto o agente conversava comigo sobre sua ida a Bahia e como a “Chapadá” era bonita. Mas apesar do cansaço, é sempre bom ser tão bem recebido por pessoas que têm uma visão tão alto astral da sua terra, especialmente em tempos nebulosos.

Saído da imigração, minha mochila nas costas, o ar frio da França nos pulmões foi me revigorando lentamente. Encontrei meu amigo e fomos a caminho de Paris. Como estava cedo, fomos dar uma volta pela cidade. Não sei bem o que eu senti naquele momento, mas me recordo de pensar “meu Deus! Eu estou em Paris!”. Não sei por que pensei assim, nunca fui do tipo deslumbrado, mas a emoção quando chega às vezes nos mostra faces nossas ainda desconhecidas. E o Johann começou a me contar as coisas interessantes sobre os franceses. Me lembro que a primeira coisa que me disse foi: Márcio, escute bem, nós franceses acreditamos que somos os melhores, não somos, mas acreditamos que somos. Nossa comida é a melhor, nosso país é o melhor, nossa língua é a melhor. Por isso, quando você for sair, se lembre de sempre falar em francês com as pessoas, caso precise de alguma coisa”. E eu pensei: Ai, mô Pai, com esse meu francês enferrujado... to lascado!”. Mas aí ele mudou de assunto e começou a contar as histórias das ruas por onde passávamos, entre elas, uma que me deixou meio sem jeito. Ao passarmos por um parque nas proximidades da Torre Eiffel ele disse, aqui é perigoso você andar à noite, há muitos michés chamados “Brésiliens”, em busca de programa e muitas vezes ocorrem episódios de violência”. Isso era dizer que os putos da França eram brasileiros e que eram violentos. Fazer o quê, né? Cada um se vira como quer.

A arquitetura de Paris, a organização de ruas e avenidas, a disposição dos prédios, as alamedas de
árvores desnudas pelos ventos do inverno, o sol brilhando frio no céu azul, logo tiraram minha mente dos “Brésiliens” decadentes. O som do francês bem articulado de Johann, a Bossa Nova na voz de Henri Salvador na rádio, e a percepção de estar trafegando pelas ruas sobre as quais lia nos livros de história trouxeram um sentimento de conquista, de Neil Armstrong na Lua. Mas a bandeira cravada era a brasileira, do Brasil de Catarina Paraguaçu, de Santos Dummont que voou sobre ali no 14 Bis, da música inventada por João Gilberto e Tom Jobim que havia conquistado os franceses desde a década de 60. Era o Brasil na França de forma torta ou direita, mas o Brasil.

E aí, chegamos à Torre. Quando estávamos estacionando, porém, a surpresa. Me transportei de volta às ruas de Salvador ou do Rio – as lembranças da terrinha nunca saem de nós. Nem havíamos saído do carro quando um grupo de 30 a 40 imigrantes (provavelmente) senegaleses, com mochilas nas costas e sacolas pesadas nas mãos, corriam desbandeirados pela rua, gritando “Allez! Allez! e fugindo do RAPA. Sim, tem RAPA em Paris! Os imigrantes ficam pelos pontos turísticos vendendo souvenirs da França sem pagar impostos. Então, vez ou outra, como acontece por aqui, a polícia chega e leva tudo embora e prende os vendedores, boa parte dos quais está ilegal no país. A maioria deles é africana, há alguns do oriente médio também. Quando eu vi aquele monte de homens correndo em nossa direção, pensei que estivesse acontecendo algum atentado a bomba. Meu amigo viu minha cara de pânico e logo tratou de me acalmar, me explicando a situação. A Paris dos meus romances e filmes piegas já não estava tão deslumbrante assim. Na verdade, estava muito semelhante às cidades brasileiras que eu conheço. Mas vá lá, a Torre Eiffel continua linda! E dali a alguns dias eu estaria de volta a ela. Esperando ver um show de fogos de artifícios e música eletrônica pra esquentar a noite.

Esperei ansiosamente pela noite do réveillon sem comentar com meus amigos sobre minhas expectativas. Apenas aguardava enquanto fazia meus passeios, desbravava a cidade, desenferrujava meu francês e viajava pela terra do Homem da Máscara de Ferro – falarei sobre tudo em outros posts.
 
O dia 31 veio cheio de novas aventuras. Eu estava hospedado na casa de meu amigo, mas no dia 31 e 1º resolvi ir para um hostel mais ao centro da cidade sob os protestos de Johann e sua família que me diziam “on ne peut pas croire, Marciô. Tu dois rester chez nous! Un hostel!”. Mas eu fui, afinal, se a noite é uma criança, em Paris é ela é um feto em formação. Especialmente no último dia do ano. Queria andar pelas ruas até de manhã, chegar em casa bêbado de café com chocolate e dormir até o pé fazer bico sem incomodar a rotina de uma família tão gente boa e acolhedora.

Me lembrei que se estivesse em Salvador, teria ido à praia de manhã, visto o pôr-do-sol na Ponta de Humaitá e depois me reunido com a família para agradecermos ao Eterno pelo ano que passou. Depois, era cada um pra um lado à procura de festas e muvuca. Em Paris, passamos o dia rodando, encapotados, caminhando no frio sob a deliciosa garoa fina que ia e vinha abençoando nossa caminhada. Visitamos catacumbas e museus. Comemos baguetes, falafels e crepes imensos com Nutella. Batemos perna o dia inteiro. Vimos a cidade viva, sentimos o cansaço morto e fomos para o hotel onde meus amigos estavam hospedados.

Por volta das 22 Gabi resolveu fazer uma pequena ceia de Ano Novo com coisas que havíamos comprado no mercado no caminho de volta ao hotel deles. Uma macarronada deliciosa para restaurar as forças dos andarilhos! Nos deliciamos com o banquete, brindamos, fotografamos, e saímos para ver a despedida do ano junto à Torre Eiffel, onde Johann e alguns amigos seus iam nos esperar.

Não é necessário dizer que metade da população teve a mesma ideia e as estações de metrô se empanturraram de residentes e turistas felizes. Mas tudo de forma ordeira, sem tumulto, sem agonia. Alguns dos que seguiam conosco levavam garrafas de champanhe nas mãos, outros iam com elas dentro da sacola. Localizamos nosso anfitrião e ficamos conversando, conhecendo gente e contando o tempo para a agonia começar. Paris é uma festa!  Mas não uma festa cheia de fogos de artifício, luzes coloridas no céu, shows musicais e champanhes explodindo, conforme descobrimos alguns minutos antes da meia-noite. É isso mesmo: nem fogos, nem vela, só uma torre amarela, sem música, sem bombas, sem barulheira. Se é o oposto  disso o que você procura, na véspera de ano novo não vá à Paris porque será uma imensa decepção. O governo parisiense não se dá ao desfrute de queimar milhares de euros num show pirotécnico de 15-30 minutos como se faz no Brasil e em outras partes do mundo, nem gasta verba pública pagando artista para cantar pro povo; o máximo que fazem é acender as luzes da Torre Eiffel à meia-noite como piscas-piscas de Natal – por isso, é melhor estar por lá do que no Arco do Triunfo onde o único sinal da virada do ano é o grito da populaça ensandecida, mas muitos desavisados vão para lá e voltam com cara de tacho.


A festa propriamente dita está no simples fato de nos encontrarmos na Cidade Luz, nas largas ruas cinzentas e frias sustentando seus vetustos prédios de cimento e mármore que contrastam com a decoração de luzes coloridas, desde as proximidades do Louvre ao Arco do Triunfo, e que estão cheias de stands de comidas típicas do mundo inteiro, inclusive churrasco brasileiro. A alegria se dá por estarmos cercados por estranhos que te abraçam ao “badalar dos sinos” (utilizo a expressão apenas ilustrativamente, uma vez que a crescente comunidade muçulmana francesa reivindicou do governo que proibisse o repicar dos sinos das igrejas cristãs por se sentirem ofendidos; mesma razão pela qual você não verá ou ouvirá pelas ruas ou lojas nenhuma das bandeirinhas ou musiquinhas de Joyeux Noël - Feliz Natal), e gritam, pulando com você “Bonne Année! Bonne Année!” ou qualquer expressão semelhante em suas próprias línguas maternas.

Outra curiosidade é que essa folia toda se dá sem que as pessoas estejam bebendo, pois é proibido ter garrafas de bebida alcoólica nas ruas. Portanto, não leve sua bebidinha para celebrar o Ano Novo como muita gente estava fazendo. Se você for sair do hotel e precisar de álcool para se locomover, beba antes e vá porque a polícia, infiltrada na multidão, te rende e leva sua cachaça embora. Vi


beberrinhos e beberrões com cara de cachorro que quebrou o prato olhando as mãos vazias depois que os canas levaram sua manguaça embora. Alguns imigrantes te oferecem bebida na rua, não compre! É contra a lei. Se quiser beber, vá para um bar ou café nas proximidades da Torre ou do Arco, lá as pessoas estão bebendo seus vinhos, seus champanhes, chás, cafés, e compartilhando da doce companhia de estranhos e amigos instantâneos nas ruas abarrotadas, enquanto esperam a multidão ir aos poucos desocupando as estações de metrô – que até ao meio-dia do dia 1º não cobram tarifas – e sentem o vento gelado da noite francesa na calçada em frente aos bares, restaurantes e cafés sendo esquentados pelo calor humano aceso ao redor nos olhos daqueles que nessa data tão emblemática estão buscando novos começos, novos caminhos, novas amizades. Pessoas que serão capazes de te parar na rua e cantar pra você como se saídas de um filme desses que se viam até os anos 60 – como aconteceu conosco quando subíamos a rua de madrugada em direção à gare e um francês regado a vinho pulou na nossa frente e começou a cantar “I wanna love you”, de Bob Marley, segurou um de nós pela mão e começou a dançar em plena rua, cantando a plenos pulmões e parando a multidão que vibrava com aplausos e assobios ao nosso redor. Trazendo ao nosso íntimo a questão: pra que fogos, pra que shows caríssimos, pra que explodir champanhes?


O importante mesmo era celebrar o ano que passou, agradecer as conquistas e as dificuldades que nos fortaleceram, lançar vibrações positivas para os próximos 365 dias e seis horas, pensar em nossos entes queridos, todos eles, e lhes enviar nosso amor, olhar ao redor e ver tantos rostos estranhos felizes, tanta gente desconhecida conversando como se te conhecesse há anos e nossos amigos ainda mais amigos do que há alguns dias. Essa é Paris do Réveillon: a cidade das novas descobertas, sem fogos de artifícios. 


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