segunda-feira, dezembro 13, 2010

E foi assim...

Nem uma fita, nem um cartão, nem uma vela acesa, nem uma pétala de rosa. Nada que lembrasse a morte prematura e estúpida de Luis Henrique Silva Sacramento na semana passada num shopping center de Salvador.

O menino, de apenas quinze anos, brincava com seus amigos na escadaria do shopping quando perdeu o equilíbrio e caiu do terceiro piso direto para a morte entre neve artificial e renas de Papai Noel.

Lá no chão frio e solitário ele agonizava já inconsciente enquanto, por um lado, os seguranças tentavam afastar a multidão de curiosos ávida por ver o infortúnio do garoto; e do outro, funcionários do shopping corriam para arrumar a decoração que foi destruída pela queda de Luis Henrique, essa que, segundo nota no site de uma emissora de TV local, “já havia sido refeita antes da chegada dos policiais à cena do acidente”.

O menino agonizava no chão, sendo assistido pelos seguranças e curiosos, enquanto os funcionários do shopping se preocupavam em REFAZER A DECORAÇÃO, ELIMINAR imediatamente os sinais da tristeza que um acidente como aquele poderia causar nos cidadãos que circulavam pelo centro de compras.

Afinal, que pais comprariam presentes para seus filhos vendo diante de si a cena trágica em que um garoto de apenas quinze anos deixou de existir; em pensar que às vésperas do Natal uma família estaria mergulhada na dor, na tristeza, na melancolia? Quem, em sua condição de humanidade, pensaria em gastar seu dinheiro naquele exato momento em que um rapazinho, cujos sonhos, alegrias, esperanças, enfim, cuja vida lhe fora ceifada de forma tão sem porquê, estava morto a alguns metros, ou centímetros de distância?

Quem em sua humanidade não se sentiria triste, coração pesaroso, olhos mareados por ver qualquer vida, especialmente a de um menino, se extinguindo no chão após uma queda tão absurda? Quem em sua humanidade não acharia desprezível a pressa dos funcionários em recolocar as decorações nos seus devidos lugares, em re-enfeitar a praça central desse shopping ao lado da qual jazia o corpo já sem vida de Luis Henrique? Muito mais numa época como o Natal em que há mais de 1800 anos celebramos - ou deveríamos celebrar - o nascimento da Misericórdia, da Paz, da Salvação, da Harmonia, da Compaixão entre os homens e, especialmente, do Amor.

No entanto, apenas alguns minutos após a retirada do corpo, a única coisa que ainda pudesse lembrar, mesmo que sutilmente, qualquer resquício dessa compaixão era o rosto de uma ou outra senhora de mais idade condoída pelo acidente porque, talvez, lembrasse de seus próprios filhos e netos, ou os olhinhos esbugalhados de uma criancinha que não entendia o que ocorrera enquanto os pais tentavam fazê-la esquecer aquele incidentezinho em que um garoto deixara de existir.

Hoje, oito dias depois, não há nada que nos faça pensar no fato. Desde o começo da semana, em frente ao locus mortis de Luis Henrique, as pessoas continuam andando para lá e para cá cheias de compras nas mãos, rindo, fazendo graça, ouvindo o coral que continua cantando suas músicas ditas natalinas, mas que em nada lembram o Amor, a Misericórdia, a Compaixão.

Músicas “natalinas” que celebram não o nascimento do Salvador, mas que incentivam ao consumo, às compras, através de refrãos como “papai Noel chegou com presentes de Natal”; músicas que nos lembram de que precisamos ser salvos de nós mesmos, de olharmos para dentro e especialmente para fora de nós e vermos essa reificação, essa coisificação que estão fazendo conosco.

É preciso abrir os olhos para não deixarmos nossa humanidade se transformar em coisa sem sentido originária dos cultos ao individualismo e a Mamon. É preciso olhar para Franz Kafka e entender o sentido de “A metamorfose”, lembrar dessa história em que Gregor Samsa “acorda pela manhã, depois de sonhos conturbados, metamorfoseado em um inseto” do qual a família quererá livrar-se em breve. É preciso não permitir que nos roubem a moral e nos lancem de volta à animalidade.

É preciso entender o que significa ter nas praças centrais dos shopping centers – local de afluência de gente de todas as classes e faixas etárias – Uma enorme árvore de Natal, fábricas de Papai Noel, renas na neve enquanto o Jesusinho e sua familiazinha são representados por um presepiozinho num cantinho qualquer – quando o há.

É preciso ir além do conceito de religião do qual o natal está imbuído e entendermos o conceito de humanidade, de moral humana, amor ao próximo, respeito à vida que a idéia do nascimento de Cristo traz ou, ao contrário, talvez seja mesmo preciso recorrer ao conceito antigo de religião – re-ligar, re-fazer, re-atar – e nos ligarmos a um tempo em que se chorava com aqueles que choravam e alegrava-se com aqueles que se alegravam, um tempo em que o nosso coração não estava cegado pelas escamas do consumismo desenfreado, da competitividade capitalista que nos faz ver o próximo como concorrente em vez de um companheiro, de um ser que tem como parte integrante sua a divindade; um tempo em que se acreditava que o ser humano trazia em si mais do que a possibilidade de satisfazer o desejo, as necessidades do outro, sem a brutalidade que programas sensacionalistas de TV, de um jornalismo horrorizante, cada vez mais usam para bestializar nosso espírito e banalizar o sentido da existência em sociedade.

É preciso lembrar que, mesmo com tragédias pessoais tão grandes quanto a morte de Luis Henrique, a vida continua, mas sem se esquecer que não estamos sós no mundo; sem acreditar que o outro seja apenas uma coisa que não faz falta porque “eu não o conheço”, ou que os homens são simples peças na engrenagem do mundo e que, quando demande a ocasião, serão imediatamente substituídas, redecoradas, refeitas para que não haja resquícios que atrapalhem o bom funcionamento das vendas.

Assim, quando o coral cantar suas músicas de Noel – nem uma vela, nem uma rosa, nem um cartão para Luis Henrique –, quando os pais incentivarem os filhos a ressoarem que “o bom velhinho não se esquece de ninguém” – nem uma vela, nem uma fita, nem uma flor para Luis Henrique-, quando os apelos das compras cegarem nossos olhos – nem uma lágrima, nem uma vela, nem uma pétala de rosa por Luis Henrique -, nos lembremos daquela mensagem antiga que a ocasião natalina nos traz; mensagem simples e profunda, capaz de mudar todo o curso da humanidade. Lembremo-nos tão somente de que ser humano e não animal não está no poder de compra que se tem, mas sim no poder demasiadamente humano de amar ao próximo e sentir a sua perda.

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